Textos





Arte de Anna Paes

O homem que não sabia como nasce a primavera


Eliane Triska
 

          Montanhas imponentes circundavam a pequena aldeia, protegendo-a dos açoites tempestuosos provocados pela irritabilidade dos ventos.
          Vissem-nos ali, nada mais seríamos do que homens comuns a laborar a terra, produzindo o pão, às vistas de olhos pintados por montanhas...
          Certa manhã em que o sol subia brincando, correndo por entre elas, como os meninos fazem quando estão felizes, mesmo de muito longe, podia se avistar a aldeia enviando sinais de fumaça ao céu. Que coisa estranha! Eram tantos os golfões de fumaça subindo, subindo, que, em determinado momento, céu e terra cegaram-se. Tornaram-se invisíveis - um ao outro. Completos estranhos!
          Tudo se poderia esperar, em meio ao grande breu que cobria a aldeia, menos que o céu começasse, inexplicavelmente, a cuspir imensas porções de água.
          Crer no que eu via? Mas quem se atreveria a duvidar de um diálogo entre a terra e o céu? Quem sabe, não seria um dos tantos afogamentos que a terra é obrigada a suportar?! Não era!
           O rio sinuoso, rente às montanhas, caudaloso e manso, parecia a postos para o fenômeno que estava prestes a se precipitar sobre a aldeia.
          Eu pressenti! Eu vi as grandes águas celestes, despejadas na terra, subirem vertiginosamente, represadas pelos braços vigorosos das montanhas, enquanto as pequenas casas da aldeia desprendiam-se da terra e também subiam... Num berço de águas, iam sendo levadas bem para o alto, à cabeça das montanhas.
          Céus! Como isso era possível? Balançavam... Dançavam, parecendo que as montanhas as estavam gargarejando. Todos sabiam, não sei como, que estavam naquele momento sendo observados pelos deuses.
          As janelas abriram-se, e lá estavam todos. Apertavam-se! Ansiosos, disputavam lugares um junto aos outros, executando sons lamentosos com os olhos fixos no céu. Indescritível transe! Nenhuma palavra! Nenhuma precisão!
          Tempo de imprecisão!... Os sons audíveis foram enfraquecendo na companhia das águas!
          Ah, águas obedientes! Juntaram-se às irmãs do rio, enquanto outras misturavam-se à nova terra.
          As casas, por sua vez, de súbito, voltaram a sentir a dureza do chão.
          Deuses e criaturas também haviam dialogado...
          Tudo voltava à normal rotina na aldeia, embora homens, mulheres e crianças se mostrassem ainda mais humildes.
          Vagarosamente, um a um foram saindo de suas casas para reunirem-se, ajoelhados, numa formação circular em torno do portentoso campanário que hasteava um talentoso sino.
          As palavras ainda estavam protegidas pelo silêncio, quando, em meio ao grande cálice invertido, um menino ergueu-se e gritou: Chegou a primavera!
          Todos se levantaram, enquanto os olhares, que agora exibiam pequenas pintinhas multicoloridas, cintilavam.
          De imediato, a euforia tomou conta de toda a aldeia. Foi quando o mais velho dos anciões, parecendo alheio a tudo e carregando uma expressão de perplexidade cansada, disse:
           ─ Como não pude perceber, até hoje, como é que nasce a primavera!?



Fevereiro de 2013/RS



Eliane Triska
Enviado por Eliane Triska em 23/02/2013
Alterado em 23/02/2013
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